Matéria publicada no Site da ABRASCO - www. abrasco.org.br/site/outrasnoticias/ notas-oficiais-abrasco/saude-e-um-direito-social-e-um-dever-do-estado/43881/, em 11 de novembro de 2019
As entidades do movimento da reforma sanitária brasileira, signatárias desta carta, reconhecendo a gravidade da crise fiscal e do fraco desempenho da economia, que estrangulam as políticas sociais nos municípios, vêm externar suas preocupações aos parlamentares, prefeitos e secretários municipais de saúde no que diz respeito à proposta de portaria do Ministério da Saúde, que muda os critérios de rateio de recursos federais destinados ao financiamento da atenção primária em saúde.
Tal proposta está alinhada com a política de austeridade fiscal, que, a partir de 2016, introduziu um teto para as despesas primárias, por meio da Emenda Constitucional 95, que vem reduzindo o piso do governo federal em termos reais per capita das ações e serviços públicos de saúde. Esse arrocho se torna mais grave com as recentes propostas apresentadas pelo poder executivo, que visam, a um só tempo, reduzir o teto dos gastos, eliminar o mínimo da saúde na união, estados e municípios e colocar a saúde e a educação numa disputa fratricida – que certamente agravam as condições epidemiológicas, ampliam a desigualdade de acesso e não corrigem os vazios assistenciais.
Neste quadro, sendo a atenção primária uma pedra fundamental da arquitetura da universalidade, integralidade, equidade e participação social do Sistema Único de Saúde (SUS), qualquer alteração no seu financiamento e na sua organização, em especial se ameaça sua sustentabilidade econômica no curto prazo, deve ser submetida para aprovação do Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei complementar 141/2012, mas antes amplamente discutida com o Congresso Nacional e com os conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde – que contam com a presença de gestores, prestadores, trabalhadores e usuários –, garantindo a participação da comunidade e de seus representantes no poder legislativo, dentro do espírito democrático que deve prevalecer e orientar o funcionamento de sociedades que tem os direitos de cidadania como valor.
Até recentemente, sem uma proposta objetiva e transparente, o debate foi insuficiente e limitado aos círculos da burocracia nas três esferas de governo, impedindo o exame e a crítica do controle social e da comunidade científica. As mudanças propostas podem, de forma silenciosa, romper com o pacto de solidariedade que fundamentou o modelo de proteção social à saúde, criado na Constituição de 1988. Três aspectos, em especial, podem afetar negativamente as condições de vida e saúde do povo brasileiro, que já enfrenta o retorno de doenças evitáveis e a proliferação das arboviroses, no contexto da tripla carga das doenças (infecciosas, crônicas e causas externas):
(I) a definição do rateio de recursos federais a partir da “pessoa cadastrada” rompe com o princípio da saúde como direito de todas as pessoas e inviabiliza a aplicação de recursos públicos segundo as necessidades de saúde da população nos territórios, o que permitiria dimensionar melhor as desigualdades relativas às condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e geográficas dos municípios, conforme preconiza a Lei 141/2012. Essa Lei reforça a norma constitucional que consagra a política de saúde enquanto direito social, em sentido oposto a proposta de focalização do Banco Mundial, que norteará as mudanças na atenção primária, produzindo consequências indesejáveis sobre a desigualdade de acesso, sobretudo, nas principais regiões metropolitanas;
(II) considerando que o SUS é subfinanciado e por isso sua gestão encontra dificuldade para se aperfeiçoar, apesar da política de austeridade fiscal, não se pode pensar em diminuição de recursos, seja o ano que for e em qualquer área do Ministério da Saúde. Os “incentivos” econômicos oferecidos para 2020 aos gestores comprometidos com a construção do SUS na fase de transição para implantar as mudanças no financiamento da atenção primária são ilusórios. Há mais de uma década, os municípios estão sobrecarregados e não suportarão nenhuma restrição financeira, fato que violaria o princípio do não retrocesso no custeio dos direitos fundamentais. Além disto, o pacto federativo brasileiro requer ação solidária entre os três entes do governo para o cumprimento das responsabilidades do Estado com a saúde da população. Às vésperas das eleições municipais de 2020, não é justo impor aos profissionais do SUS nos municípios sobrecarga ainda maior de trabalho para operacionalizar as mudanças da portaria, sem que os problemas reais da gestão sejam de fato considerados e equacionados. Considerando a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, o teto dos gastos sociais e a portaria 233 da Secretaria do Tesouro Nacional – STN, que incorpora das despesas com pessoal das organizações sociais desreguladas, o repasse do Piso da Atenção Básica – PAB fixo torna-se fundamental e inegociável, atacando brutalmente os cuidados primários na base e a organização do sistema universal;
(III) essa proposta descaracteriza completamente a Estratégia de Saúde Família – ESF, cuja resolutividade garantiu a redução das taxas de mortalidade infantil, das internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde e dos gastos hospitalares, além de aumentar da cobertura pré-natal. O Ministério da Saúde prioriza o Programa Saúde na Hora, que reduz a equipe multiprofissional da ESF e valoriza o modelo biomédico de cuidado fragmentado, correndo-se o risco de organizar as unidades básicas de saúde a partir da lógica das unidades de pronto atendimento. Na mesma linha, prioriza a delimitação de uma carteira de serviços, que transforma a atenção primária em atenção focalizada, uma infâmia que legitima um “SUS para pobres”, um retrocesso em relação ao princípio de integralidade e aos avanços decorrentes da ESF adotada no Brasil, documentados pelos estudos já realizados por organizações internacionais e nacionais sobre o tema.
Nesse sentido, estamos alertando, em caráter de urgência, parlamentares, prefeitos e secretários municipais de saúde sobre os efeitos deletérios dessa nova modalidade de financiamento da APS e conclamamos todos a garantir a discussão desta portaria no congresso nacional e nos conselhos de saúde do todo o país, para que a sociedade possa se expressar legitimamente, fortalecendo o diálogo democrático entre o Estado e a sociedade, na perspectiva de defender um SUS público e de qualidade para todos os brasileiros.
Salvador, 8 de novembro de 2019
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABrES Associação Brasileira de Enfermagem – ABEN Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – ABMMD Associação Brasileira da Rede Unida – REDE UNIDA Associação Nacional de Pós-Graduandos – ANPG Associação Paulista de Saúde Pública – APSP Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES Federação Nacional dos Farmacêuticos – FENAFAR Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares – RNMMP Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz – ASFOC-SN Sociedade Brasileira de Bioética – SBB
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