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A RELAÇÃO PÚBLICO / PRIVADO NA GESTÃO E ADMINISTRAÇÃO DO SUS

Foto do escritor: INSTITUTO FLÁVIO LUCEINSTITUTO FLÁVIO LUCE

Por Fernando Molinos Pires Filho

Sob o titulo “Comando Privado” - referindo-se a gestão da Atenção Primária à Saúde no Município de Porto Alegre/RS - o Jornal Correio do Povo, do dia 24.07.2022, em seu Caderno + Domingo, dedicou significativo espaço para a reportagem do jornalista Felipe Samuel que, sob diversos aspectos, levantou esse tema trazendo ao conhecimento público a compreensão e os posicionamento que, em relação a ele, assumem os diferentes atores nele diretamente envolvidos.

Tal fato nos leva a expressar por meio desse pequeno texto, que titulamos de: “A relação público X privado na gestão e administração do SUS”, também, considerações sobre o assunto.

Antes de tudo, julgamos importante explicar as duas razões que nos levaram a tornar publico esse registro:

A primeira é para cumprimentar o Jornal pela relevância do tema de que se ocupou. Em especial a seu repórter, que com perfeita clareza, soube em seis tópicos de sua abordagem, tomando como referência esse importante pilar de nossa política de saúde – a Atenção Primária à Saúde - levantar os principais aspectos que cercam seu entendimento e importância, assim como os problemas que assume essa vertente estrutural de nosso sistema de saúde, como sua forma de gestão, ambas expressas no dispositivo constitucional que estabelece a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Portanto, neste aspecto, fica a recomendação que busquem a leitura dessa matéria.

Os itens da reportagem tratam da:

Polêmica na administração de unidades de saúde; Trabalho e atendimento [fala da presidente do Conselho Municipal de Saúde (CMS);

Terceirização resultou na precarização do atendimento [fala do presidente do Sindicato Médico do RS (SIMERS);

O sistema garante mais produtividade e resulitividade dos casos, entende Santa Casa;

PUC e Divina Providência falam que contratualização permitiu ampliar serviços e Associação Hospitalar Vila nova garante que paga aos profissionais salários “acima da média”.

Além disso, a reportagem ilustra com imagens de busca de atendimento por parte da população, sem entretanto, registrar suas falas, ausência que a torna objeto do acontecimento, repetimos, bem documentado, pelas falas dos demais atores envolvidos nessa questão.

A segunda razão que fundamenta essa nossa iniciativa decorre da relevância do tema no que diz respeito ao papel e responsabilidade que tal trato e problemática remete:

Para os governantes, sejam do executivo, legislativo e judiciário;

Para os profissionais de saúde e suas entidades de representação;

Para a relação que ambos, em seus respectivos fazeres estabelecem com:

As Entidades de Formação de profissionais da área de saúde;

Com os Conselhos de Saúde sejam locais, municipais Estaduais e Federal.

Sem desconsiderar, ainda, os compromissos que deveriam ter ou assumir com a promoção e participação em atividades de controle social, como as Conferencias de Saúde.

E, acima disso tudo, as formas, propósitos e posturas que assumem em relação as ações dialógicas que precisariam desenvolver com a comunidade.

Assim, depreende-se da leitura da reportagem um cipoal de questões que vão desde as relações econômicas que envolvem o poder público e as entidades prestadoras de serviço; as relações de trabalho no que respeita a precarização da assistência, a qualidade da atenção; as garantias e direitos dos trabalhadores, e as formas de remunerá-los; as condições reais para aprendizado dos alunos estagiários, em função das rotinas de serviços e as exigências dos recursos pedagógicos; as exigências contratuais fundadas em princípios de produtividade e não de qualidade; a distorção no aspecto de integralidade das ações em seus diferentes níveis de referencia e contra referência e a ausência de mecanismos de controle social que permitam conhecer a satisfação e demandas dos pacientes que recorrem a esse atendimento fragmentado que, com frequência, desconhece e não se responsabiliza pela atenção integral dos pacientes.

Em nosso entender, entretanto, essas importantes questões que sem dúvida precisam ser consideradas, constituem-se apenas em manifestações ou evidências que decorrem de uma problemática que tem suas raízes bem mais profundas, relacionadas a concepção que comumente se atribuí à saúde, as práticas médicas que prevalecem e são utilizadas para se intervir em relação a ela e a desconsideração das formas política e jurídicas que o país estabeleceu na Constituição Federal para a gestão e administração do sistema público que foi estruturado com a finalidade de tratar a saúde como direito de todos e responsabilidade do Estado.

Esclarecemos, ainda, que aqui não estamos nos propondo a uma abordagem cientifica, mas apenas a uma tentativa de melhor conhecer os elementos trazidos pela reportagem para fortalecer a necessidade de uma análise fundamentada dos determinantes da situação nela retratada. Ou seja, o que se quer alcançar é uma análise baseada não apenas nas suas manifestações mas em alguns conceitos e princípios que fundamentam o que por ocasião da nossa Constituição Federal de 1988, deveriam, mas efetivamente não estão, orientando a organização e funcionamento do Sistema Único de Saúde – o SUS, em nosso país.

Situação que, por meio de mecanismos regulamentários infra constitucionais, tem acobertado, pelos poderes públicos, práticas não públicas que voltam-se para favorecer interesses privados, fazendo da saúde produto de venda para ser paga, pelo Estado, para os que por ela não podem adquiri-la.

Esta forma de agir de governantes de plantão, sustenta, enganosamente, uma oferta de serviços que é distorcida, porque se vale, para se realizar, de manobras em relação aos dispositivos constitucionais que asseguram ao setor privado de saúde a condição de atuar, mas em caráter complementar aos serviços públicos. Tal fato assegura garantir a esse setor da economia uma reserva de mercado. Burla-se, dessa forma, a saúde como direito de todos responsabilidade do Estado, na medida em que, por esse meio, se estabelece um verdadeiro processo de privatização das verbas públicas.

Para que se tome essa narrativa em sua verdadeira dimensão e não se confunda a situação retratada na reportagem como um simples tema tomado para preencher a pauta do noticiário basta situá-lo, como muito bem fez o jornalista, em relação ao tempo de uso desse tipo de alternativa, a dimensão que já atinge, sua tendência de progressividade, de dimensão e repercussão no erário público.

Em relação a isso, os fatos, repetimos bem retratado pela reportagem, falam por si, senão vejamos alguns trechos nela citados:

“ Em pouco mais de dois anos, a Secretaria Municipal da Saúde(SMS) contratualizou 100 unidades de saúde com quatro instituições: Santa Casa de Misericórdia, Hospital Divina Providencia, Associação Hospitalar Vila Nova e PUCRS. Mais 15 estão em processo de contratualização, o que vai aumentar o total nas mãos da iniciativa privada.”

“A troca na forma de gestão da Atenção Primária a Saúde na cidade começou em 2019, quando o Supremo Federal (STF) classificou como inconstitucional a existência do Instituto Municipal da Estratégia de Saúde da Família (IMFESP)”. A extinção do orgão foi parar na justiça que determinou a demissão de todos os servidores ainda vinculados ao Instituto.”

“ Conforme a SMS , a contratualização das unidades de saúde vem ocorrendo desde o início de 2020. A Prefeitura desembolsa R$ 16,5 milhões, por mês, para custear os serviços.”

“Além das 115 unidades contratualizadas, de um total de 132, mais 13 unidades são conveniadas sendo 12 com o Grupo Hospitalar Conceição GHC) e uma com o hospital de Clinicas de Porto Alegre (HCPA).”

No rastro desta causa fundante dos fatos apontados, revela-se o verdadeiro “drible” da Constituição. Além disso, comete o poder público mais um desserviço cultural ao distorcer a compreensão que se deve ter do atual conceito de saúde, prática que se estabelece por dois mecanismos.

O primeiro é o de tentar vender a ideia de que existe duas saúde, uma preventiva e outra curativa. Com isso se constrói um argumento “amenizante” dessa prática privatista, qual seja, a de que o que está sendo “delegado à iniciativa privada” é a parte da atenção primária, em sua perspectiva, menos importante e menos resolutiva para resolver o problema das doenças. A curativa, “mais nobre e resolutiva”, permanece como responsabilidade pública, o que também não é uma verdade frente ao emprego que o Estado tem, desde sempre, sob diferentes modos, se valido dos serviços e empreendimentos privados de saúde.

O segundo é de que ao assim proceder conduz ao entendimento de que a saúde é ausência de doença e não uma condição de vida, ou seja, hoje, a mais atualizada compreensão cientifica formulada por uma compreensão mundial. Conceito, aliás, referendado pelos mais importantes fóruns e instâncias de saúde - como as Conferencias mundiais de saúde e adotada pela Organização Mundial de Saúde que a entendem em nossa forma de expressá-la como:

‘’saúde é vida, é qualidade de vida, é a expressão das contradições que as mulheres e os homens vivenciam no experienciar do seu próprio viver em sociedade, ou seja, uma condição que sempre, mas de forma qualitativamente diferenciada, estará presente, em função do grau de justiça e equidade alcançado pela sociedade.”

O significado prático dessa formulação é a de que o conhecimento da tecno-ciência produzido na área não é o único responsável pela melhoria da condição de saúde da população, na medida que ela é produto de uma condição que resgata ao indivíduos sua condição de seres sócias e não apenas identidades biológicas tomadas e tratadas na condição de enfermos submissos e impotentes (verdadeiros seres pacientes) incapazes para intervir em seus determinantes de vida. Ou seja, a integralidade da saúde contempla o homem em sua totalidade de ser, tornado não paciente mas sujeito capaz de protagonizar pela sua condição de saúde.

A área da saúde que trabalha na construção dessa identidade e a da atenção primária não só porque intervém na prevenção, mas também e fundamentalmente, porque atua pedagogicamente na educação sanitária e na construção de mecanismos comunitários de organização das comunidades para a defesa de seus direitos em relação a saúde integral. Razão pela qual demandam um tipo de atenção que envolve e trabalha com equipes formadas por profissionais de várias áreas do conhecimento humanos e não apenas de profissionais de saúde, das áreas tradicionais desse campo. Isto, evidentemente, não significa que possa ser desconsiderada como elemento ou componente estrutural da área de atenção, o que se reafirma pela necessidade de um sistema absolutamente integrado de referência e contra referencia das pessoas que buscam atenção, o que se realiza, com maior eficiência, sob um comando único de gestão, que trabalhe sintonizado por um único objetivo de forma a não ter suas ações conflitadas por interesses e regras de instituições que por mais alinhadas a dispositivos contratuais tem suas especificidades próprias de funcionamento voltadas para atingir seus particulares interesses.

Torna-se, pois evidente, que com tal pratica gerencial, não apenas se desconstrói o Sistema Único de Saúde, na medida em que se fragiliza seu caráter público, se empobrece, se desqualifica, se rompe com os princípios fundantes do modelo de atenção que trabalha e garante a integralidade da atenção, intervindo e servindo a população, respeitando-a como agentes não passivos do processo que se persegue de construção da sociedades saudáveis, que constroem as condições para prevenção das doenças sem se descurar daquelas que demandam por cuidados curativos em condições adequadas para oferta de uma atenção integrada de qualidade. Razão pela qual constitucionalmente é tomada como um direito de todos sob responsabilidade do Estado.

Sob tal ótica, saúde constitui-se, muito além de um problema individual, em uma questão social, coletiva, de relevância pública, como refere nossa Constituição. Um direito de cidadania e um dever do Estado.

Saúde não é doença.

Por isso:

Saúde não se cura.

Saúde não se previne.

Saúde não é mercadoria

Por isso:

Saúde não se vende, nem se compra.

Saúde, vida, atenção à saúde, PROMOVE-SE!

Nessa perspectiva, não é propriedade de ninguém, mas uma construção social que avança na medida em que, os cidadãos, em ação conjunta com os profissionais, que assim a entendem, e que tenham condições de trabalho asseguradas por um poder público que respeita a constituição e a compreenda como um direito, com eles, se alie para avançar nessa construção.

Finalmente um alerta: de quem trabalha a doença como objeto de negócio, mercancia, benemerência ou filantropia e ignora a saúde como direito, pouco se pode esperar, muito menos contar como parceiros verdadeiros, nessa empreitada.

· Professor Titular da UFRGS (aposentado). Doutor em Odontologia Social, pelo Curso de Doutorado do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal Fluminense. Ex-Diretor do Centro de Pesquisas em Odontologia Social da Fac. Odontologia da UFRGS. Ex-Diretor da Escola de Saúde Pública do Estado RS. Membro da Coordenação do Instituto Flávio Luce.


 
 
 

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